Três Perguntas aos Demógrafos

Dando início à semana, o Blog dos Estudantes de Demografia da Unicamp tem a honra de receber mais um convidado para a Série Três Perguntas aos Demógrafos. Desta vez, temos o privilégio de contar com a presença do renomado pesquisador George Martine, cuja carreira como sociólogo e demógrafo tem sido dedicada, em grande parte, às questões de desenvolvimento, especialmente na América Latina e, sobretudo, no território brasileiro. Reconhecido por suas contribuições nas áreas de migrações internas, urbanização e sustentabilidade, Martine traz consigo um vasto conhecimento que certamente enriquecerá nossa discussão.

Após essa breve introdução, é com grande satisfação que apresentamos as três perguntas elaboradas para o nosso convidado George Martine.

PERGUNTA 1) Como demógrafo, o que você tem a dizer para os atuais e futuros demógrafos com relação aos temas que podem se tornar, daqui alguns anos, mais pertinentes no campo científico da demografia? Quais seriam eles?

A palavra chave aqui é “pertinente”. Obviamente, esse predicado pode ser entendido de diferentes maneiras. É natural que pesquisadores de carreira definem sua contribuição em termos de uma determinada tradição que tenha relevância “acadêmica”, ou seja, em termos de atividades científicas que contribuem para o melhor conhecimento de um tema novo ou antigo. Daí surgem uma grande quantidade de temas que já são clássicos nos estudos demográficos. O fato é que a demografia é essencial para gerir ou aperfeiçoar políticas públicas e mecanismos de gestão e planejamento numa gama muito variada de temas e setores. Ela também tem a vantagem de estar na base de quase todas as outras ciências sociais. Não é fácil fazer um ranking entre essa produção científica, até porque ela evolui em função de situações históricas, influências políticas e modas ao longo do tempo.

Pessoalmente, acredito que a prioridade e a ascendência dos nossos estudos se derivem de um engajamento na análise e resolução de questões importantes para a organização social de uma coletividade. Sou adepto da visão do sociólogo C. Wright Mills de que, para ter ressonância, a ciência social exige compromisso e participação.  Mills, considerado o sociólogo norte-americano mais influente do século 20, era preocupado com o papel do cientista social e sustentava que o pesquisador social não pode ser um mero observador neutro dos eventos sociais, econômicos e políticos.

Nesta linha, valorizo temas e abordagens inspiradas pela sua relevância para a compreensão e a condução de processos sociais que podemos considerar “cruciais”,  seja em nível local, nacional ou global. Esta perspectiva, obviamente,  não é incompatível com a produção científica. Muito pelo contrário, a qualidade científica é essencial para a relevância. Sugiro privilegiar questões de maior peso na atual conjuntura histórica, e que deveriam ser objeto de ativismo e/ou de políticas públicas. Por isso, eu daria maior ênfase a dois temas que já fazem parte da práxis dos nossos estudos demográficos, mas que têm maior impacto sobre o bem-estar humano neste momento histórico. Ousaria dizer que a questão que se destaca como prioritária e urgente para o próprio futuro da humanidade é a questão ambiental e, especificamente, as mudanças (ou caos) climático. Outro tema que deve assumir maior atenção no futuro,  é a migração internacional. São temas críticos e estratégicos que emergiram com força no século 21 e que terão uma ascendência cada vez maior nas agendas nacionais e globais. (Um terceiro tema crítico – o envelhecimento da população e suas diversas e importantes ramificações – poderia ser incluído aqui, mas fica para outra oportunidade).

Além dessa escolha, acho que seria essencial fazer um esforço mais eficaz para criar ou usar canais que divulguem amplamente os resultados das pesquisas e, assim, viabilizem sua inclusão na agenda dos movimentos sociais e nas políticas públicas.

O debate sobre população e meio ambiente tem enfocado principalmente a discussão da pressão dos números sobre os recursos naturais escassos. Esse debate sobre ritmo e tamanho de crescimento é sem dúvida importante, mas rende pouco em termos de ações práticas nos dias de hoje. O problema fundamental dos nossos tempos surge do caminho adotado pela civilização moderna para o crescimento econômico e a eventual redução da pobreza – o throughput growth – ou seja, a transformação contínua de recursos naturais em dejetos com o objetivo de gerar mais PIB. A dinâmica populacional influencia o ambiente e o sistema climático global através das emissões de carbono geradas pelo consumo de número crescente de consumidores. Há muita incompreensão nesta equação porque  “pessoa” é geralmente considerada equivalente a “consumidor”. 

Na atualidade e no futuro próximo, o impacto recíproco entre crescimento populacional e meio ambiente será determinado principalmente pela trajetória insustentável do “desenvolvimento via crescimento econômico”.  Estudos recentes enfatizam a importante queda da fecundidade no mundo. Na ausência de “catástrofes malthusianos”, o futuro demográfico será determinado, em grande parte, pela inércia dos processos demográficos já em curso. É claro que o acesso à saúde reprodutiva deve ser urgentemente generalizado, mas seus efeitos no crescimento são de longo prazo, enquanto o caos climático é de curto prazo.

Por outro lado, é fato que muitos países – tipo Coreia do Sul, Japão e Taiwan – estão ansiosos para aumentar sua população já envelhecida. Fatores estruturais e culturais dilapidam os esforços governamentais para estimular o aumento da fecundidade. Uma opção aparentemente óbvia seria de atrair migrantes de outros países, mas esta alternava se esbarra no etnocentrismo e no racismo.

Muito mais preocupantes  ainda são as noções fantasmagóricas e perversas propaladas por alguns de nossos gênios bilionários –  tipo Musk e Bezos – no sentido de que é preciso aumentar a população para ampliar o tamanho dos mercados, inspirar maior rapidez do desenvolvimento tecnológico e permitir a colonização de outros planetas.

Neste contexto, a principal contribuição que se pode fazer agora é concentrar a atenção nas relações bilaterais entre a dinâmica ambiental e a composição e distribuição da população. Precisamos trabalhar essa dinâmica, visando analisar melhor as causas estruturais e os determinantes sociopolíticos e econômicos que tanto multiplicam as emissões como exacerbam seus efeitos negativos sobre determinados setores da população. Nesse sentido, a demografia brasileira já avançou muito, mas a problemática ambiental e seus determinantes estruturais e consequências para coletividades humanas específicos precisam ser permanentemente aprofundados, atualizados e divulgados.

Em relação ao tema da migração internacional, a globalização desigual promoveu uma enorme movimentação de recursos e produtos entre fronteiras, mas em conjunto com as barreiras culturais e raciais, continuou impedindo o movimento de pessoas através das mesmas fronteiras. Ao mesmo tempo, o negacionismo, a decadência do multilateralismo, a multiplicação de conflitos, junto com o crescimento do nacionalismo exacerbado em vários países “desenvolvidos”,  estão tendo efeitos trágicos na agravação da crise climática e na multiplicidade de conflitos em diversas partes do mundo. Os mesmos fatores estão aumentando os problemas globais na produção de alimentos que, inevitavelmente, vão também impactar sobremaneira as populações mais pobres e vulneráveis.

Essa conjugação de fatores vai inevitavelmente gerar enormes movimentos migratórios dentro e entre países, especialmente os mais pobres em direção ao Norte. Estas migrações são inevitáveis, apesar de todos os empecilhos cada vez mais violentos e cruéis adotados pelos países menos afetados pelos processos em curso. Se persistir essa intolerância, a promoção da mobilidade como um direito humano básico passará a ser uma diretriz vazia e ineficaz.  Precisamos ajudar a explicitar as raízes desta problemática e suas inevitáveis consequências em termos de conflitos e perdas de vida humanas.

Porque o discurso demagógico do Trump e de tantos outros sobre a migração internacional gera tanto apoio? Por um lado, as populações mais pobres de um país receptor – composto em grande parte de migrações anteriores – tem se posicionado tradicionalmente contra novas levas de migrantes, devido ao medo de perder seus empregos para estas (novas) hordas de imigrantes. Porém, cada vez mais hoje em dia, os impactos muito positivos da imigração e de sua força de trabalho ficam no escuro porque não há interesse político em explicitar a enorme contribuição que eles fazem no país de destino. A mídia é, em parte, responsável por essa situação porque enfoca as crises fronteiriças e ofuscam os aportes significativos dos migrantes. Nesse sentido, estudos demográficos e socioeconômicos podem retificar esses preconceitos ao visibilizar a importância da força de trabalho (e da cultura) dos imigrantes.

A urgência de uma melhor governança neste problema requer mobilização política em níveis nacionais e multilaterais, a fim de diminuir o etnocentrismo que atualmente impede a consideração da migração internacional como solução válida para a diminuição da força de trabalho e contrabalançar o declínio da fecundidade. Para tudo isso, é essencial uma melhor quantificação e qualificação das alternativas e dos problemas atuais e prováveis, de suas causas e impactos, da enorme importância do fluxo migratório esperado, além da sugestão de ações efetivas. O maior desafio no futuro é, portanto, relacionar esse processo com a complexidade das causas estruturais que obstaculizam a migração e ajudar a definir estratégias e políticas de mobilidade que oferecem alternativas reais de ficar ou migrar.

Para que esses estudos – seja na área do caos ambiental ou da migração internacional – possam ajudar na formulação de abordagens mais efetivas, é necessário, como dizia Mills, que a pesquisa esteja interagindo mais diretamente com a vida política. De acordo com essa perspectiva, os cientistas sociais devem difundir os resultados dos seus trabalhos de modo a favorecer a transparência dos problemas e suscitar o debate político, ajudando assim a promover políticas mais adequadas.

Nesse sentido, precisamos ampliar e aprofundar nossa interface com a mídia, não somente para dar maior visibilidade ao nosso trabalho e, desta forma, ampliar a visibilidade da nossa produção e o nosso mercado de trabalho, mas também para ter um papel mais efetivo nas decisões importantes da sociedade, seja no setor privado ou no setor público. Essa maior densidade de interação com a mídia é extremamente importante porque somente passamos a ser realmente consultados pela sociedade depois que a mídia descobre que nós temos coisas interessantes a dizer sobre alguns dos temas críticos que condicionam o exercício da cidadania e o bem-estar da nossa sociedade.

PERGUNTA 2) Pensando nos seus estudos mais recentes e no atual cenário global, qual e como seria a participação da Demografia enquanto ciência, e/ou outras ciências que dialoguem com esta, para o enfrentamento à crise climática, destacando a atuação dos diferentes e diversificados governos para com este problema?

Acho que já antecipei parte da minha resposta na primeira pergunta. Em síntese, a dinâmica demográfica interage com todos os problemas e soluções que se possam antever para o caos climático. Mas há, obviamente, diferentes níveis de análise e atuação.  Numa perspectiva mais cabal, a relação entre população e meio ambiente se realiza no contexto do desenvolvimento. Na nossa civilização de hoje, desenvolvimento se define em termos do crescimento econômico dinamizado pelo consumo. E ponto! Mas a análise de situações concretas é essencial para entender e viabilizar ações sobre elas. Da gama infinita de temas que merecem pesquisas para a compreensão e a mobilização de ações efetivas relacionadas com a crise climática, vou mencionar apenas três das principais questões.

No Brasil, uma questão já tradicional nos nossos estudos se torna cada vez mais premente – a ocupação insustentável de terras e regiões de grande valor ambiental. Apesar dos esforços de ambientalistas nacionais e internacionais, observa-se um constante retrocesso na preservação de biomas vitais, especialmente na Amazônia e no Centro-Oeste. O atual governo, após tímidos esforços iniciais visando à redução de atividades que deterioram o meio ambiente nestes espaços, está cogitando a exploração de petróleo na Amazônia – apesar desta iniciativa ser negativa, tanto em termos ambientais como econômicos.  O tal PAC-verde que prevê R$ 449 bilhões para projetos de “transição e segurança energética” gastaria 60% dos seus recursos só para a ampliação de pesquisas petroleiras.

O agronegócio ocupa um espaço econômico e político cada vez mais ressaltado no PIB brasileiro, mas ao custo da devastação ambiental de áreas enormes. Neste exato momento, a bancada ruralista está usando sua capacidade de merchandising e todo seu poder econômico e político para atacar novamente a fiscalização na área ambiental. Pretende, inter alia, liberar o desmate de vegetação original em todos os biomas que não são florestais, além de legalizar o garimpo em reservas extrativistas.  Este tipo de ações abre espaço para a ampliação do desmatamento e seus impactos na destruição da biodiversidade e na catalisação das mudanças climáticas globais. Essas questões não são novas, mas o aprofundamento e divulgação de estudos (Onde? Quem? Como? Quanto? Consequências…?) é vital para reorientar essa força política. Falta mais questionamentos dos supostos benefícios econômicos deste tipo de ocupação e uma promoção efetiva de alternativas mais sustentáveis. A gravidade da situação exige estudos mais incisivos capazes de alertar a opinião pública e, consequentemente, influenciar os formuladores de políticas.

Segundo, é fácil observar que, no Brasil, as cidades são particularmente vulneráveis  às crises e desastres ditas naturais. Estas crises aumentam anualmente, ampliando a gravidade e os impactos de inundações e enchentes devido à maior frequência e intensidade de eventos climáticos extremos. São problemas agravados pela falta de previsão do inevitável crescimento urbano e, consequentemente, pela expansão urbana em locais inadequados como nas encostas de morros e nas beiras de rios. O ideal, no curto prazo, pareceria ser deslocar os residentes destas áreas para outras menos vulneráveis aos efeitos das chuvas torrenciais. Na prática, porém, é agora difícil encontrar o espaço adequado e disponível para realizar tais deslocamentos. Isso é tragicamente ilustrado em cidades como Petrópolis, onde a invasão generalizada dos morros por uma urbanização desgovernada não parece ter solução.

A sustentabilidade urbana depende da capacidade dos formuladores de políticas e programas de adotar uma visão mais ampla da utilização do espaço. As questões urbanas oferecem oportunidades únicas para traduzir a pesquisa científica em políticas concretas. A efetividade de iniciativas neste setor depende de posturas mais proativas. Neste campo, ainda há muito que se fazer em termos da análise das causas estruturais destes acontecimentos e da vulnerabilidade de determinados grupos populacionais aos efeitos negativos dos eventos climáticos extremos em curso. Por exemplo, a suposta ausência de espaços urbanas para habitações de baixa renda é frequentemente resultado da especulação imobiliária e de seus conluios com o poder local. A identificação de espaços e grupos populacionais mais vulneráveis aos impactos imediatos e repetidos dos eventos climáticos extremos (e nem tão extremos) é algo que os demógrafos já analisam há algum tempo. Mas é óbvio que, a cada enchente ou seca, nossas análises não chegam com o destaque necessário para mobilizar a opinião pública e, consequentemente, para inspirar políticas e ações efetivas. Talvez fosse útil começar com uma recopilação dos resultados  desses estudos sobre vulnerabilidade urbana e fazer a sua divulgação em grande escala. Isto ajudaria a identificação de outros temas e questões que mereceriam maior ênfase em estudos futuros.

Terceiro, outro tema de importância crescente seria relativo aos efeitos da crise climática na elevação do nível do mar. As zonas costeiras sempre têm concentrado populações e atividades econômicas, devido à sua acessibilidade, seus recursos naturais e suas oportunidades de negócios. Elas concentram uma parcela importante de toda a população urbana. A elevação do nível do mar, combinado com outros eventos climáticos, inundaria grande parte destas áreas. A proteção de residentes de áreas litorâneos exigirá planos de mitigação e emigração das áreas de baixa altitude. Tais medidas requerem visão, compromisso e longo tempo de preparação. Ou seja, são também urgentes!

PERGUNTA 3) Considerando contextos mais específicos, particularmente os dos países da América Latina, e a sua trajetória de estudos sobre migração interna, urbanização e desigualdades sociais, quais os desafios mais importantes que estes países necessitam superar? Pensando particularmente que ao falar em pobreza, desigualdade e segregação na América Latina estamos falando de mazelas que atingem historicamente as populações indígenas e afrodescendentes.

A desigualdade é certamente uma das características mais marcantes das sociedades latino-americanas. As desigualdades por sexo, idade, raça-etnia, urbano/rural são generalizadas na renda, educação, ocupação, habitação, saúde e acesso a outros serviços e amenidades sociais. Confesso não ter know-how ou experiências anteriores que me autorizariam a tratar adequadamente, em dimensão latino-americana, as questões atuais sobre a relação entre distribuição espacial e desigualdade, e menos ainda em relação às populações indígenas ou afrodescendentes. Mesmo sem pedigree para analisar essas questões, não há como não ficar furioso com o andamento, tanto das ações marciais que dizimam sistematicamente populações pobres e negras, como a retomada das ações selvagens de garimpeiros e grupos paramilitares na destruição da população, do ambiente e da terra dos povos originais. São temas que exigem um esforço muito maior do poder público; este só será eficaz com a pressão de movimentos sociais empoderados pelas análises atualizadas dessa cruel realidade. 

Além disso, eu me permitiria apenas aventar um breve pensamento mais genérico sobre a situação política que vai afetar sobremaneira a questão social como um todo na região. É fato que, nessa etapa da globalização, um grande número de países está elegendo governos de extrema direita, com bandeiras trumpianas de nacionalismo “liberal”, nas quais se negligenciam as questões sociais dentro da preocupação com o crescimento econômico que beneficia as classes mais privilegiadas. Na América Latina, por outro lado, ainda têm alguns países sob o jugo de “esquerdas” antiquadas e ditatoriais. São poucos os países dirigidos por coalisões de centro-esquerdo ou centro-direito com propostas efetivas e duráveis, decorrentes de um compromisso genuíno com a questão social ou ambiental. Mesmo nestes países, as exigências de competir na economia globalizada e de conseguir o tão-almejado crescimento econômico, reduz a efetividade de propostas sociais.

Nestas circunstâncias, as perspectivas de resolução da extrema desigualdade que caracteriza a região são limitadas. Como ajudar a modificar isso? Só através (novamente) de um ativismo político sustentado por análises coerentes e convincentes que destacam claramente a gravidade dos grandes problemas sociais e que podem entrar no mainstream das discussões, das forças ativas e de decisões políticas. A análise demográfica é, novamente, essencial neste trabalho de identificar, quantificar e qualificar os grandes problemas sociais,  suas raízes histórico-estruturais e suas perspectivas de solução.

O Blog dos Estudantes em Demografia da Unicamp agradece a participação do pesquisador George Martine na série Três Perguntas aos Demógrafos.

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