Resenha: O filme “Onde está Segunda?” e o mito malthusiano.

Onde está segunda
Onde está segunda? (2017)

Veja o trailer: Onde Está Segunda?

Por Ma. Kelly C. M. Camargo
Mestra em Demografia (PGD-IFCH/Unicamp)

camargo.k@outlook.com

Prof. Dr. Roberto do Carmo 
Docente  (IFCH/Unicamp) e Pesquisador (Nepo/Unicamp)

roberto@nepo.unicamp.br

A possibilidade de uma superpopulação tem sido o pesadelo de muitos pesquisadores, políticos e gestores públicos ao redor do mundo. Desde a teoria elaborada por Thomas Malthus, em 1798, o argumento de que o crescimento populacional não poderia ser sustentado pela capacidade de produção de alimentos tornou-se uma persistente sombra no inconsciente coletivo. Apesar de a teoria ser sistematicamente negada pela própria realidade, através do desenvolvimento tecnológico (que expandiu a capacidade produtiva), conforme os problemas ambientais ganham espaço nas agendas científicas e midiáticas, os ecos malthusianos ressurgem, trazendo como carro-chefe a necessidade de controle do crescimento populacional (HOGAN, 2001).

Na história mundial[1] não foram poucas as políticas públicas que tentaram diminuir as taxas de natalidade e fecundidade das sociedades e, assim, frear o aumento demográfico. Provavelmente a mais conhecida delas é a Política do Filho Único posta em prática na China a partir da década de 1970. Essa consistia numa lei segundo a qual ficava proibido, a qualquer casal, ter mais de um filho. A sanção estava a cargo da imposição de severas multas para famílias com filhos adicionais. A partir de 2015[2], a política foi flexibilizada ao liberar os casais para terem até dois filhos.

O filme “Onde está Segunda” (título em inglês “What happened to Monday?”)[3] mostra a política do filho único sendo levada às últimas consequências. O filme se passa num mundo futurista, em que os alimentos são geneticamente modificados, a fim de atender a crescente população utilizando menos espaço físico. Mas as mudanças genéticas nos alimentos geram como efeito colateral o nascimento cada vez maior de gêmeos, imperando em uma superpopulação. Para contornar o problema, a gestão pública dita que as famílias só podem ter um filho. A família deve escolher a criança que deseja manter, e os irmãos são teoricamente confinados em ambiente criogênico para serem despertados quando a situação do planeta estiver controlada.

Contudo, Terrence Settman (Willem Dafoe), o avô de sete irmãs gêmeas (interpretadas na idade adulta por Noomi Rapace) consegue driblar o sistema, e cria-las para que assumam uma identidade única, Karen Settman, a qual cada uma interpreta no dia da semana respectivo ao que foram nomeadas. Assim, a primeira filha, chamada de Segunda, sai da segurança de seu lar para viver Karen nas segundas-feiras, e sucessivamente. Mas quando, numa noite supostamente normal, trinta anos depois do nascimento das gêmeas, Segunda não volta para casa, as outras irmãs precisam descobrir o que aconteceu com ela, ao mesmo tempo em que tentam manter o disfarce e a segurança de si próprias.

O filme de ficção científica “Onde está Segunda?” traz vários problemas pelos quais a pressão populacional já foi responsabilizada: desertificação, fome, esgotamento de recursos e degradação ambiental. Nesse sentido, os diálogos do filme em que Nicolette Cayman (Glenn Close), criadora e executora da política do filho único, justifica seus feitos soam preocupantemente parecidos com o que escutamos tantas vezes quando o assunto é crescimento populacional. Nicolette afirma que a quantidade de alimentos que as irmãs utilizaram nesse tempo de vida poderia ter sustentado duas outras famílias inteiras, sendo egoísmo manter tantos filhos. Ainda mais quando não se possui condições financeiras para arcar com as despesas dos mesmos.

É importante ressaltar que o crescimento populacional tem sido temido principalmente no que se refere ao medo de que este se trate do incremento das parcelas mais pobres nas cidades. Exatamente a situação que o filme retrata: no mundo distópico a paisagem é marcada pela constância da miséria e da indigência, tidas como consequência direta da superpopulação. O que no discurso de Nicolette justifica não só a criação da política do filho único, como a realização de ações de extrema opressão sobre a população, sobretudo daqueles que fogem ao sistema, para a manutenção da política. Sendo nítida a naturalização da violência através de cenas contundentes de brutalidade, que inundam a tela com sangue -, pois nesse ambiente nem mesmo a exposição da violência é capaz de chocar.

De fato, o aumento da preocupação com as questões relativas às mudanças climáticas dos últimos anos reacende a discussão sobre a necessidade de se controlar o crescimento populacional. É indiscutível que o volume populacional é importante em sua relação com o ambiente, pois um número maior de pessoas exige maiores investimentos públicos em setores como saúde, educação e infraestrutura, como também maior quantidade de alimento disponível. Entretanto, existem outros aspectos a serem considerados nessa relação, como, por exemplo, conhecer as características do modelo de produção da sociedade, e o quê e o quanto essa sociedade consome.

De acordo com Martine (2014), a cultura do consumo vem sendo construída ao longo de séculos, junto do desenvolvimento do modelo de produção capitalista. O momento em que nossa civilização se encontra é marcado pela retroalimentação entre globalização do consumo e produção de massa, pois quanto mais empregos são criados, mais renda é gerada e mais mercadorias são consumidas. Ainda que esse cenário seja desejável na perspectiva do desenvolvimento econômico e da inclusão social, ele também acaba por repercutir em processos problemáticos do ponto de vista ambiental. Isto posto, é possível afirmar que a maior questão a se pensar não é o crescimento demográfico em si, e sim as relações econômicas e sociais nas quais se projeta esse crescimento. O aumento populacional em país subdesenvolvido não tem as mesmas consequências ambientais do crescimento da população em país desenvolvido, que possui outro ritmo de consumo. Num país subdesenvolvido nascem pessoas, nos países em desenvolvimento e desenvolvidos nascem consumidores (MARTINE, 2014).

Destaca-se que não é de hoje que o discurso demográfico é utilizado para justificar políticas públicas intrusivas. Mas é essencial não nos perdermos nas supostas certezas, porque a dinâmica demográfica não é formada por fatalidades históricas, as variáveis demográficas se moldam também em relação às características sociopolíticas e econômicas da sociedade, que estão em constante mutação. E por isso, a imposição de políticas de controle demográfico podem trazer repercussões sociais inesperadas e negativas. Vejam a China, por exemplo, que hoje possui uma população composta por uma maior proporção[4] de homens do que de mulheres. Porque com a imposição da política do filho único numa sociedade em que os idosos são cuidados pelas famílias de seus filhos homens, a preferência é que o filho escolhido seja do sexo masculino, para evitar desamparo na velhice. Repercutindo em uma série de situações, e dentre essas no aborto, abandono ou morte de meninas.

Por fim, em “Onde está Segunda?” o discurso oficial de organização de um mundo controlado mostra-se uma inverdade. Levando-nos a questionar se esse desfecho faz alusão à forma insustentável em que a relação entre população, desenvolvimento e ambiente tem sido desenhada por nossa sociedade.

REFERÊNCIAS
ALVES, José E. D. O fim da política de filho único e o desequilíbrio na razão de sexo na China. Laboratório de Estudos Populacionais. Minas Gerais: UFJF, abr. 2016. Disponível em: http://www.ufjf.br/ladem/2016/04/08/o-fim- da-politica- de-filho- unico-e- o desequilibrio- na-razao-de- sexo-na- china-artigo- de-jose- eustaquio-diniz- alves/. Acesso em 16 de out. 2017.
_______. AS POLÍTICAS POPULACIONAIS E O PLANEJAMENTO FAMILIAR NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL. Textos para discussão, n o 21. Escola Nacional de Ciências Estatísticas. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
HOGAN, Daniel. Crescimento demográfico e meio ambiente. Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 8, n. 1/2, p. 61-71, 1991.
MARTINE, George. Ciência, cultura e a estagnação da agenda ambiental. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de Janeiro, v. 31, n.1, p. 231-238, jan./jun. 2014.

NOTAS
[1] Sobre as políticas populacionais de planejamento familiar postas em prática no Brasil e América Latina, ver Alves (2006).[2] BBC Brasil. Por que a política do filho único virou uma bomba demográfica na China. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151029_china_bomba_demografica_cc. Acesso em 16 de out. de 2017.
[3] “Onde Está Segunda?”  (What Happened to Monday ?) é um filme distópico de ficção científica e suspense, escrito por Max Botkin e Kerry Williamson, dirigido por Tommy Wirkola, e estrelando por Noomi RapaceGlenn Close, e Willem Dafoe. Foi lançado em 18 de agosto de 2017 pela Netflix, que comprou os direitos de transmissão do filme em diversos países, inclusive no Brasil.

[4] Em 2015, o desequilíbrio entre homens e mulheres na China chega a 13,4 milhões, em 2040 deverá haver 17,4 milhões de homens a mais do que mulheres no país (ALVES, 2016).

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